Entrámos em Baleizão eram 11h15. Um dia de sol primaveril com o fevereiro a despedir-se. A entrevista com a filha de Catarina Eufémia estava marcada para as 11h30 horas, na Junta de Freguesia. Não sei se isto acontece com outras pessoas, mas, eu, sempre que entro nesta aldeia do concelho de Beja, tenho a sensação de estar a visitar um pedaço da história da resistência e da luta antifascista em Portugal.
Maria Catarina Baleizão do Carmo já estava à nossa espera. Tem 76 anos. Aparência jovial e descontraída, apesar de carregar consigo a memória e o legado da sua mãe, Catarina Efigénia Sabino Eufémia. A mulher que se transformou num símbolo da resistência ao salazarismo no Alentejo nasceu a 13 de Fevereiro de 1928 e morreu no dia 19 de Maio de 1954, com apenas 26 anos. Nessa manhã, a trabalhadora agrícola colocou-se à frente de uma manifestação de treze ceifeiras rurais para reivindicar o aumento do salário para dois escudos por jorna. O feitor ficou com medo e chamou a GNR. “O que queres, bruta?”, perguntou um GNR. “O que eu quero é pão para matar a fome aos meus filhos!”, respondeu Catarina. Foi esbofeteada com violência e caiu. Levantou-se e desafiou: “Já agora, mate-me!” A resposta soou seca. O tenente Carrajola disparou três tiros à queima-roupa, pelas costas. Catarina tombou morta, com o pequeno José, o filho de 8 meses ao colo.
As memórias de Maria Catarina, filha da “Ceifeira sem medo”
“Nós morávamos em Quintos (pequena aldeia perto de Baleizão). O meu pai era lá cantoneiro. Nesse dia a minha mãe levou-nos logo de manhãzinha para casa da minha avó. Eu tinha seis anos, o meu irmão, 3 e o mais novo, que estava ao colo da minha mãe quando tudo aconteceu, tinha apenas oito meses”, relatou Maria Catarina.
A menina de seis anos não tinha noção do que estava a acontecer. “Lembro de termos sido forçados a não sair à rua. As pessoas, que já sabiam do sucedido, começaram a juntar-se na casa dos meus avós. Ninguém podia sair porque eles (a GNR) andavam com os cavalos nas ruas para não deixar ninguém se manifestar”, recordou.
Nesse dia, o tema de conversa à porta fechada na pequena aldeia era só um: “Catarina Eufémia foi assassinada”. Maria Catarina descreve que “houve um grande alvoroço junto ao poço (local onde hoje se encontra o busto de homenagem à ceifeira de Baleizão)”. A população estava revoltada. Maria tem memória de telefonarem ao pai, António Joaquim do Carmo, e ele aparecer lá em casa dos seus avós. “Estava muito agitado. A cara dele estava diferente, triste”. Conta ainda que foi difícil convencer o avô a não sair à rua. “Ele queria manifestar-se, estava revoltado e queria fazer ouvir esse grito de revolta”, lembra.
Funeral de Catarina Eufémia com lágrimas e gritos de revolta
Depois da autopsia realizou-se o funeral. As autoridades tentaram tudo para que a cerimónia fúnebre fosse o mais discreta possível. Não conseguiram. A população de Baleizão soube que o corpo estava a ser levado para o cemitério de Quintos e juntou-se ao funeral com “gritos de protesto e revolta”. Ainda houve carga das autoridades sobre a população e várias detenções.
O tenente Carrajola foi julgado, absolvido e mais tarde, em Setembro de 1958, condecorado com a ordem de Avis, grau Cavaleiro. Faleceu em Aljustrel, Beja, em 1964.
Passados vinte anos, depois do 25 de Abril 1974, os restos mortais da “ceifeira sem medo” foram trasladados para a sua aldeia, Baleizão.
António Joaquim do Carmo, viúvo e sem qualquer tipo de ajuda, não tinha condições para suportar as despesas da educação dos três filhos. Os irmãos foram colocados numa creche, em Beja. A nossa entrevistada, Maria Catarina, na altura com seis anos e em idade escolar, foi para a Casa Pia de Lisboa. “Nesse período tinha muitas saudades dos meus irmãos e do meu pai. Sabia que ele estava sozinho…” recordou emocionada. Saiu da instituição com 16 anos e o antigo 5º ano feito. Arranjou emprego no escritório de uma empresa sediada na capital e, mais tarde, emigrou para França, onde o namorado já estava à sua espera. A memória de Catarina Eufémia permanece bem viva, com o seu nome em várias ruas do Pais. Zeca Afonso dedicou-lhe uma canção (“Cantar Alentejano”) e o cante perpétua a história da ceifeira sem medo:
Ó Baleizão, Baleizão, Ó terra de Catarina, Onde nasceu e morreu, Com uma bala assassina.