Vivemos numa sociedade hiperconectada, onde a informação circula à velocidade de um clique e a visibilidade de atos públicos é, muitas vezes, inevitável. É neste contexto que emergem novas formas de participação cívica, frequentemente confundidas, ou pior, desvalorizadas, com a antiga figura do “Bufo”. É preciso, contudo, distinguir claramente a denúncia autoritária do passado daquela que hoje se faz em nome da cidadania, da ética e do bem comum.
O texto do meu amigo Gavino Paixão, que nos apresenta a figura do “Bufo moderno” nas redes sociais peca por uma visão nostálgica e generalizante que confunde denúncia com exibicionismo, e vigilância cívica com perseguição moral. Se é verdade que há excessos nas redes – e há muita, ninguém o nega – também é verdade que a exposição pública de más práticas, abusos ou ilegalidades tem contribuído para alertar consciências, corrigir comportamentos e, em muitos casos, pressionar as autoridades a agir onde antes reinava a passividade.
Durante a ditadura, o “Bufo” servia um sistema opressivo, atuava nas sombras e entregava o vizinho por suspeitas políticas ou por inveja mesquinha. Era parte de uma engrenagem de medo. Hoje, quando alguém fotografa um carro estacionado em cima de uma passadeira ou denuncia nas redes sociais um ato de violência num espaço público, não o faz em nome de um regime autoritário, mas sim, muitas vezes, porque as vias tradicionais de queixa são ineficazes ou ignoradas. A partilha pública torna-se, assim, uma forma de pressão social e um apelo à responsabilização, que pode e deve ser feita com critérios éticos (e agora lembrei-me da figura do Governador Civil que era uma porta aberta para receber quem tinha problemas e, muitas vezes, a solução para essas dificuldades, mas isto poderá fazer parte de outra reflexão).
Voltando ao assunto, a crítica ao “Bufo Influente” esquece também que vivemos numa era em que o poder deixou de ser exclusivamente vertical. O cidadão comum ganhou meios para expor injustiças, para mobilizar opinião pública e até para fiscalizar o poder político. Seremos nós a querer voltar a uma sociedade onde só as autoridades podiam falar, e os cidadãos deviam calar? Não será mais saudável termos hoje uma pluralidade de vozes, mesmo que nem todas nos agradem, do que o silêncio cúmplice do tempo “da outra senhora?”
É claro que nem toda a exposição pública é legítima. Há limites que não devem ser ultrapassados: a privacidade alheia, a presunção de inocência, o respeito pela dignidade das pessoas. Denunciar não é insultar, nem é alimentar o ódio — e aí sim, as redes sociais precisam de maior literacia e regulação. Mas rotular qualquer gesto de denúncia como “bufaria digital” é empobrecer o debate democrático e desvalorizar formas legítimas de intervir na sociedade.
A Liberdade conquistada em Abril também trouxe o direito, e o dever, de vigiar o espaço público, denunciar o que está mal e participar activamente na construção de uma sociedade melhor. Não confundamos essa liberdade com o autoritarismo do passado, nem usemos a figura do “Bufo” como espantalho para descredibilizar quem simplesmente não aceita ficar calado.
O mundo mudou, meu caro Gavino. E a cidadania também.