Passados mais de dez anos sobre o reconhecimento do Cante como Património Cultural Imaterial da Humanidade, entendi que seria importante fazer uma reflexão sobre o que tem sido feito para preservar o caráter genuíno e único que tem esta manifestação artística musical.
Em meu entender, a principal forma de manter viva esta forma de expressão artística tão particular do povo do Baixo Alentejo, com uma especial atenção, segundo a minha opinião, para os três polos que, com as suas caraterísticas próprias se conseguem distinguir, a zona de Cuba/Vidigueira e a sua área de influência, a zona do Campo Branco, centrada em torno de Castro Verde e Aljustrel, e a zona da Margem Esquerda, com o foco em Serpa e Vila Nova de São Bento, é, sem qualquer dúvida, criar condições para que se cante.
É aqui que me parece que existem alguns aspetos que merecem alguma reflexão, pois julgo que podem por em causa a sua valorização. Para começar, é importante salientar que durante décadas o Cante foi uma manifestação cultural espontânea em que, naturalmente, um grupo de homens e/ou mulheres se juntavam para atenuar a dureza do trabalho rude e árduo do dia-a-dia que se vivia durante a faina dos campos ou aliviar o stress quotidiano no período de ócio ao fim do dia. Foi desta forma que o Cante se foi perpetuando e mantendo vivo, transmitindo-se de geração em geração através do legado oral dos que cantavam para os que, aos poucos, se iam integrando no grupo, sem necessitar de escolas nem de dissertações de mestrado ou teses de doutoramento que versassem sobre as suas regras e modos de cantar.
Com o passar dos tempos as modas que há uns anos surgiam de uma forma quase natural e espontânea foram gradualmente sendo substituídas por interpretações com um caráter formal e propositado para determinadas ocasiões. É certo que a evolução tecnológica veio trazer-nos um conjunto de máquinas que substituíram todos estes trabalhadores rurais e hoje o ambiente dos cafés não se pode comparar com o das tabernas, o que, consequentemente, veio contribuir para quebrar toda a envolvência que fazia brotar esta manifestação musical como um elemento agregador e unificador de gerações.
Atualmente, o Cante surge de uma forma um pouco artificial na voz de um conjunto de homens, mulheres e até mesmo jovens e crianças que, fardados a rigor e alinhados, quase como um verdadeiro pelotão militar, vão marchando numa cadência pesarosa enquanto cantam algumas modas de forma solene que recolheram do cancioneiro tradicional do Baixo Alentejo por vezes com algumas nuances que lhe conferem alguma modernidade.
Acerca da transmissão do Cante, de geração em geração, que acontecia quase diariamente quando os filhos e os netos ouviam cantar os seus pais e avós, podemos salientar que hoje isso não se verifica tendo em conta os padrões culturais, os hábitos e as rotinas de uma sociedade moderna. Desta forma, a inclusão do Cante nas escolas, poderia ser uma boa oportunidade para colmatar esta lacuna que, infelizmente, estou em crer que, se pouco depois do reconhecimento como património da UNESCO ainda se conseguiu implantar no meio escolar e subsistir durante alguns anos, atualmente está moribunda, se é que não foi já extinta.
Assim, hoje a verdadeira genuinidade desta forma de expressão artística tem-se vindo a perder e para mal do Cante encontramos com frequência grupos que cantam, mas que não encantam. Atualmente, estamos sujeitos a participar num evento como elementos que integram o público para desfrutar do prazer de ouvir algumas modas com o objetivo de fruir o momento de satisfação que isso nos pode causar e sermos dececionados por um conjunto de homens e/ou mulheres que não fazem jus à espetacularidade que o Cante encerra intrinsecamente. É importante que o Cante seja cantado por cantadores que o tratem com o devido respeito e que honrem a distinção que a UNESCO lhe atribuiu.
No verdadeiro Cante as modas são iniciadas com o ponto, a solo, que é feito por uma voz bem timbrada e cheia a que se segue o alto que, de forma contrastante, imitando a melodia principal num registo mais agudo e com alguns ornamentos à distância de uma terceira vai introduzir o refrão a que depois do primeiro verso se junta todo o restante grupo reproduzindo a melodia principal já apresentada anteriormente.
Esta é a base do Cante e, mesmo sendo um defensor da sua evolução natural, quer através da inclusão de outras temáticas, quer com a adição de alguns instrumentos, se isto não for respeitado estamos perante outra forma de expressão musical. Note-se, a título de exemplo, o excelente trabalho que tem feito António Zambujo com a sua guitarra acompanhado pelo Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias” ou, mais recentemente, Buba Espinho com os “Bandidos do Cante”, que nos trazem uma nova forma de interpretar esta expressão artística.
Porém, se estes são dois exemplos que vieram valorizar o Cante e torná-lo mais aprazível, deixando para trás algum caráter dolente e nostálgico, é certo que, infelizmente, também temos alguns exemplos que em nada honram a distinção de que foi alvo e que, por razões óbvias, não irei referir aqui.
Posto isto, e em jeito de conclusão, quero salientar que o que é importante é que se cante, mas deixemos isso para quem sabe pois para os outros deixo o seguinte ditado popular: “não vá o sapateiro além da chinela” e deixem o Cante em paz.