Da Mãe África partimos, através de savanas e desertos, cruzámos mares e espalhámo-nos pela Eurásia. Escalámos montanhas e atravessámos estepes infinitas, resistindo a frios glaciais e cobrindo-nos com peles de estranhos animais que aprendemos a caçar e/ou domesticar.
Pelo caminho fomos perdendo melanina, a pele ganhando tons de amarelo e rosa mais ou menos pálido a que, por defeito, chamaram branco. Os cabelos clareando, até se confundirem com o brilho do sol ou com as cores do fogo.
De olhos em bico, não nos detivemos nas margens dos grandes oceanos, a leste e a oeste. Há sempre um estreito, nos mares da Gronelândia, de Bering ou de Magalhães, para atravessar as Américas de costa a costa… Até que esquecemos a nossa matriz comum em África.
Eis, a traços largos, a saga do chamado Homo Sapiens https://www.esquerda.net/sites/default/files/imagens/02-2022/vestigios_de_homo_sapiens_no_leste_africa_com_mais_de_230_mil_anos-1.pdf , apesar da pouca sapiência com que temos lidado com a natureza, com as outras espécies e connosco mesmos – mas esta é outra conversa que nos levaria ao estudo dos diferentes modos de produção e dos sistemas sociais que fomos construindo.
Uma coisa é certa: não saímos de nenhuma costela de Adão. Até o mais empedernido racista, machista ou eurocêntrico é devedor de tributo genético à grande avó africana Lucy,
https://www.dw.com/pt-002/lucy-o-f%C3%B3ssil-que-reescreveu-a-hist%C3%B3ria-da-humanidade/a-42478592 ,
Mtoto
ou aos mil nomes que venham a ser propostas por antropólogos/as.
A História da humanidade confunde-se, em larga medida, com a história das migrações. Estas só irão parar se e quando já tivermos dado cabo do planeta.
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As mil e uma estórias e dramas que sobre migrações são uma parte essencial da nossa História, tantas vezes varrida para baixo do tapete por quem mais lucra com a exploração desenfreada de seres humanos obrigados a deixar tudo para trás, na esperança sempre renovada de um futuro melhor.
Como uma funcionária dos Registos de Beja que, ao balcão, se permite “dar a sua opinião”: “Eu não quero cá essa gente, são nojentos, o meu marido tem lá uns 30 ou 40…”. Esta estória, que me foi relatada na primeira pessoa, não acaba aqui; por muito que possamos compreender, não podemos ignorar, sob pena de nos tornarmos cúmplices da “minhoca que se infiltra na maçã”.
Por experiência própria, ao longo de 20 anos de ativismo na SOLIM, podia acrescentar milhares de estórias, mas hoje optei por refletir sobre o sentido mais profundo das migrações.
Termino com uma nota de esperança: há dias, cerca de 300 trabalhadores da Sudoberry, em Odemira, ao saberem que o administrador estava na empresa, dirigiram-se ao escritório. Reclamavam das 12 horas de trabalho diário, com apenas 30 minutos para refeição; de não terem água para beber no ambiente escaldante das estufas; e da falta de transparência da folha salarial: as horas-extra, ao fim de semana e aos feriados, são pagas pelos mesmos 6,22 euros.
Um jornal diário chamou-lhe “A revolta dos imigrantes de Odemira que perderam o medo”. Fixem a data: 11 de Fevereiro. Parece banal mas é uma novidade gritante que pode frutificar na selva laboral da imigração.
Invoco mais uma vez o poeta de tantas partidas e chegadas, desta vez o genial “FMI” de 1982:
“Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grândola Vila Morena”
Alberto Matos
(*) – O título desta crónica remete intencionalmente para o poema “Eu vim de longe, eu vou p’ra longe” de José Mário Branco, ele próprio um andarilho da canção. Como muitos portugueses que tentavam escapar à fome e à guerra e colocaram a sua vida nas mãos de passadores que, a troco do vil metal, tantas vezes os abandonaram aquém ou além dos Pirenéus. Com sorte, conseguiam chegar ao “Eldorado” de Champigny ou a outro qualquer bidonville para construírem a Europa dos “trinta anos gloriosos”.
Alberto Matos
Membro da Coordenadora Distrital do BE